Por Liane Garcia

Horas extras: falha de gestão ou traço estrutural da cultura organizacional?

As horas extras seguem liderando as reclamações trabalhistas no Brasil, resultado de uma combinação de fatores. De um lado, muitas empresas ainda tratam o tema como secundário: falham em desenhar jornadas adequadas, prever contingências e adotar governança efetiva sobre marcação de ponto e banco de horas.

De outro, persiste a cultura de resolver tudo com prorrogação de horário, transformando o que deveria ser uma exceção em regra e, como consequência, aumentando a litigiosidade.

Cenário exposto, podemos detectar facilmente que o problema não se limita à esfera jurídica: é de engenharia de processos e de gestão. Enquanto a jornada de trabalho for vista apenas como mero detalhe operacional, as horas extras permanecerão no topo das demandas judiciais.

Gestão de jornada exige controle e responsabilidade

A solução, a nosso sentir, não está vinculada apenas a forma do registro de ponto, mas em alinhar as metas da empresa à capacidade da equipe, garantir transparência nos métodos de controle, respeitar limites e deslocar a produtividade do excesso de horas para o desenho do trabalho. O ganho é duplo: menor passivo judicial e um ambiente interno mais saudável e competitivo.

Outro ponto crítico são os cartões de ponto com horários uniformes, frequentemente invalidados pela Justiça. Alegar desconhecimento jurídico não exime o empregador de manter registros fidedignos — obrigação prevista para empresas com mais de 20 empregados.

O que predomina, na prática, é descuido gerencial, ausência de auditoria e treinamento, ou a decisão consciente de “deixar para depois” em nome do caixa de curto prazo. A aposta é arriscada: a economia imediata se transforma em passivo ampliado por correção, juros, multas, honorários e reflexos.

Horas extras como risco financeiro e reputacional

Da perspectiva econômica, a falta de registro adequado da jornada representa um passivo oculto de difícil mensuração. Ele se acumula silenciosamente em diferenças de horas, descansos semanais, férias com terço, 13º, aviso-prévio, FGTS e multas. Os riscos se manifestam em três frentes:

  1. financeiro, pela compressão de margens;
  2. competitivo, já que vantagens ilusórias desmoronam quando o passivo emerge; e
  3. reputacional, pois práticas de jornada entram no radar de investidores e grandes clientes.

Tratar a jornada como risco operacional, com indicadoresprovisões e planos de mitigação, significa transformar compliance em governança de negócio.

Não se pode olvidar, nesse contexto, que a jurisprudência tem autorizado a indenização pela supressão de horas extras habituais. Tal realidade é decorrente menos de uma forma de engessamento empresarial e mais de garantir a proteção à expectativa remuneratória do trabalhador.

Empresas que planejam adequadamente as jornadas de seus funcionários podem redesenhar turnos, realocar atividades, requalificar equipes e indenizar quando devido, evitando quedas abruptas de renda. O engessamento surge do improviso: cortar horas sem mexer nos processos que as geravam resulta em queda de produtividade e litígios.

Da mesma forma, a integração das horas extras em verbas como férias e FGTS não é um endurecimento da Justiça, mas coerência sistêmica. Se a verba é recorrente e de natureza salarial, deve irradiar efeitos.

Teletrabalho exige controle e revisão de processos

O que ocorre é uma atualização diante de novas dinâmicas de trabalho, como metas elásticas, plataformas digitais e teletrabalho. Se a operação depende de prorrogações frequentes, a empresa deve precificar esse custo; se a meta é reduzir gastos, o caminho passa pelo redesenho de processos.

Com a recente mudança da legislação trabalhista, outro tema que vem ganhando relevância é o teletrabalho. Sob essa ótica, três pontos são cruciais:

  1. Controle: login, entregas e comunicações podem configurar jornada.
  2. Distinguir disponibilidade de tempo efetivo, exigindo políticas claras sobre contato fora do expediente e aceite prévio de horas extras.
  3. Ritmos atípicos do remoto, que demandam bancos de horas estruturados e visibilidade em tempo real.

É provável que as demandas aumentem, mas o debate tende a migrar para evidências digitais — como logs, analytics e e-mails — e para o direito à desconexão.

Embora as regras atuais já ofereçam instrumentos como controle de ponto, banco de horas e teletrabalho, ainda não dialogam plenamente com os modelos híbridos e flexíveis.

Essa defasagem normativa, somada a políticas internas vagas, alimenta conflitos que seriam evitáveis. Os problemas recorrentes surgem de bancos de horas mal configurados, metas incompatíveis com a capacidade e lideranças despreparadas em gestão de jornada.

Enquanto a jornada de trabalho não for tratada como parte estratégica da operação empresarial, seguirá sendo uma das principais fontes de litígio trabalhista no país.

Artigo originalmente publicado em RHpra VOCÊ. Clique aqui para ler

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